Um corte em nome da cultura

É uma prática conhecida por diferentes nomes. Para uns é circuncisão feminina, para outros mutilação genital feminina. Apesar de o hospital público não ter registo de casos em Macau nos últimos anos, há quem passe pelo procedimento no seu país de origem e seja trazida até cá, pelo destino. As organizações internacionais têm uma posição definida contra a prática, considerando-a como prejudicial à saúde da mulher, ou mesmo como uma forma de perpetuar a desigualdade de género. Mas quem passa por isso nem sempre avalia a situação do mesmo modo, reiterando o peso da tradição

 

Salomé Fernandes

 

De cabelo apanhado e relaxada no sofá, Ika, natural da Indonésia, recorre à curvatura entre o polegar e o indicador para explicar como é feita a incisão no clitóris que conhece como circuncisão feminina. Não se recorda daquilo por que passou, já que era recém-nascida e as memórias só mais tarde se começaram a formar. Foram os pais que, mais tarde, lho contaram. Mas tem presentes as imagens do dia em que a sua filha passou pelo mesmo.

Quis Ika que a tradição continuasse, tendo sido encorajada pela família nesse sentido, pelo que a filha foi também circuncisada quando era bebé. Uma decisão tomada apenas aquando do nascimento da criança.

Aponta que depois do nascimento, por causa da tradição, a enfermeira procede à circuncisão na clínica. “É tradição; então mesmo que não peçam aos pais, eles (profissionais de saúde) fazem-no”, explica ao Jornal TRIBUNA DE MACAU. No caso da sua filha, Ika sabia que a enfermeira ia fazer o procedimento e assistiu. Questionada sobre se foi difícil observar, responde negativamente: “é tradição; por isso tudo bem”. Nesse sentido, compara a prática à circuncisão masculina. “É como os rapazes, têm de fazer isso. Nuns países faz-se quando acabam de nascer, noutros esperam até terem cerca de nove anos”.

Yosa, que se encontra sentada ao lado, vai ajudando à tradução, dando apoio quando as palavras em inglês se tornam mais difíceis de encontrar. É assim que Ika nos explica acreditar que a circuncisão feminina se dá por motivos de limpeza e esclarece que “é para abrir”, cortando-se “só um pouco”. Com base na sua explicação, não é retirada nenhuma componente da genitália feminina externa. Reconhece que o procedimento dói, “porque a minha filha chorou e sangrou um pouco”, no entanto, não acredita que daí possam resultar problemas de saúde futuros.

Hoje, a filha tem 19 anos e a mãe indica que tomaria a mesma decisão se tivesse outra criança do género feminino. Optar por outra via seria sentir que estava a desrespeitar a família e a tradição. “Na Indonésia tem de se fazer, não se consegue parar”, diz, acrescentando que “tradição é muito forte” e que a cultura indica ser saudável.

Ika desconhece se a filha tem conhecimento de ter sido circuncisada, colocando como hipótese que todas as mulheres acabem por descobrir quando engravidam ou dão à luz. No entanto, sublinha que não se fala no tema, não por ser segredo mas porque “toda a gente sabe”.

De acordo com dados da UNICEF, entre 2010 e 2015, 49% das raparigas entre os zero e os 14 anos na Indonésia foram sujeitas a mutilação genital feminina (MGF), outro dos nomes atribuídos. Em contraste com a prática da maioria dos países, onde a mutilação genital feminina foi realizada através de meios tradicionais, na Indonésia, foram profissionais de saúde a realizar o procedimento a mais de metade das raparigas a ele sujeitas.

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Por sua vez, Yosa indicou que nunca teve dores ou efeitos secundários decorrentes disso. Afastou a existência de quaisquer problemas a nível sexual e indica que teve um parto normal. Na sua óptica, o que está em causa não é uma prática religiosa, tendo em conta que de acordo com o que perguntou relativamente à lei islâmica há opção de escolha. “Se fizermos, tudo bem, mas caso contrário também está tudo bem”, disse, acrescentando que “na Indonésia, em sítios diferentes há culturas distintas. Nalguns locais há uma grande oração e cerimónia se formos circuncisadas, mas na minha terra não é muito relevante”.

Yosa só recentemente soube ter passado pela prática e não sente que conheça essa cultura, daí que a sua filha não tenha sido circuncisada. E acredita que os hábitos estão a mudar. “Antes toda a gente passava por isto, mas agora as pessoas são modernas e não seguem a tradição, por isso já não se faz”, apontou, recordando ter visto nas notícias associações de direitos das mulheres na Indonésia a fazerem campanha contra a circuncisão.

 

O entendimento internacional

É num tom diferente que as organizações internacionais se referem à prática. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a MGF como todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total da genitália feminina externa ou outras lesões aos órgãos genitais femininos por razões não médicas. A entidade internacional explica que não há qualquer benefício de saúde decorrente do procedimento, mas antes que pode ser prejudicial a raparigas e mulheres de diferentes formas.

As complicações médicas a curto prazo incluem hemorragias, problemas urinários, febre, infecções ou mesmo a morte, enquanto a longo prazo pode gerar problemas como menstruação dolorosa, complicações durante a gravidez ou dores durante relações sexuais. É ainda apontado como um factor para problemas psicológicos, de que é exemplo o stress pós-traumático.

A UNICEF estima que todos os anos mais de três milhões de raparigas pelo mundo correm o risco de serem sujeitas a mutilação genital feminina, com a maioria a ser cortada antes dos 15 anos. “Apesar de ser internacionalmente reconhecida como uma violação aos direitos humanos, a MGF já foi realizada a mais de 200 milhões de raparigas e mulheres actualmente vivas. A prática ocorre em 30 países dispersos por três continentes, com metade [das pessoas sujeitas à prática] a viverem no Egipto, Etiópia e Indonésia”.

 

Um olhar voltado para a Ásia

A “Asian-Pacific Resource and Research Centre for Women” (ARROW), uma organização não-governamental feminista regional sediada na Malásia, que promove os direitos e saúde reprodutiva e sexual na Ásia-Pacífico juntou forças com uma organização não governamental sediada no Reino Unido, a “Orchid Project”. O objectivo é desenvolver uma rede na Ásia para o combate à MGF.

Esta rede foi lançada em Junho e de acordo com um porta-voz da “Orchid Project” está a passar por uma fase de consulta e consolidação, devendo o trabalho de promoção e colaboração começar em 2020. “As comunidades migrantes podem ser muito influentes no crescimento do movimento contra a mutilação genital feminina. Uma vez que a prática decorre num local em que toda a comunidade tem expectativas de que deve continuar, quando as pessoas são expostas a diferentes normas sociais e vivem em comunidades mais diversas onde não é norma a sujeição a MGF, estão numa posição mais forte para escolher não cortar as suas filhas”, respondeu.

A entidade deu como exemplo o caso do Reino Unido, indicando a existência de um grupo de activistas das comunidades da diáspora, migrantes e refugiados envolvidos em campanhas contra esta prática. Algo que a “Orchid Project” considera demonstrar “o poder de tais comunidades para gerar mudança onde vivem e nos seus países de herança ou origem”.

Tendo em conta os números apresentados pela UNICEF, há ainda caminho a percorrer na Ásia, mas até ao momento a região parece ter estado em segundo plano. “Os dados disponíveis sobre MGF são concentrados na região africana, o que significa que se sabe mais sobre este assunto nesse contexto e consequentemente que tem sido dada mais atenção a acabar com a MGF em países africanos”, explicou Sivananthi Thanenthiran, diretora executiva da ARROW, ao Jornal TRIBUNA DE MACAU.

De acordo com Sivananthi Thanenthiran, as pesquisas feitas até agora são de pequena escala. Um dos exemplos que deu foi de um estudo realizado por um professor associado, em 2012, com 1.196 participantes. “O estudo revelou que 93% das mulheres malaias tinham passado pelo corte, com 83% de quem respondeu a citar razões de obrigação religiosa, 35% propósitos higiénicos, 15% a vontade de controlar o desejo sexual da pessoa e 7% para satisfazer os parceiros”, indicou.

O investigador em causa descobriu também que o procedimento se tornou crescentemente médico, em vez de ser levado num ambiente mais tradicional, tendo a activista comentado que “este desenvolvimento causa desafios adicionais” por poder “erroneamente legitimar a causa como não-prejudicial”.

 

Abordagem centrada nos direitos humanos

A directora executiva da ARROW, considera que a prática é entendida como sendo cultural, apesar de reconhecer ser frequente as pessoas terem equívocos legitimados por líderes religiosos e de comunidade que acreditam que a MGF é associada à religião. “Mas essencialmente, é uma norma social e uma manifestação da patriarcado, com raízes na necessidade de controlar mulheres e raparigas, o seu corpo e sexualidade. A prática simultaneamente perpetua e é reforçada pela desigualdade de género. Muitos acreditam firmemente que estão a proteger a honra da rapariga ao sujeitá-la ao corte, e que é para o bem estar da família”.

Questionada sobre como é que o tema deve ser apresentado às comunidades, respondeu ser um assunto tabu, pelo que deve ser abordado sem julgamentos, de forma a iniciar uma conversação. “Sabemos através de histórias de sucesso de abandono de MGF, em contexto africano, que um diálogo aberto pode quebrar o silêncio sobre esta prática. Isto permitiu às comunidades partilharem as suas experiências sobre o corte e explorar porque é que o praticam, sendo que em muitos casos escolhem abandoná-lo. Por exemplo, através do trabalho em Tostan, na África Ocidental, cerca de 9.000 comunidades abandonaram MGF, através de uma abordagem focada em direitos humanos dirigida à comunidade”.

Para além disso, Sivananthi Thanenthiran apontou como um factor importante para a mudança de mentalidades separar a prática da religião. Em resposta a este jornal apontou que a aprendizagem de que a maioria das mulheres do mundo não são cortadas consiste num ponto fulcral de viragem em direção ao abandono da prática. “Assim sendo, planeamos apoiar a ligação com estudiosos religiosos que possam influenciar comunidades positivamente e transmitir claramente que a MGF não está relacionada com religião e que a prática é, de facto, não-islâmica”.

No seu entender, “precisamos definitivamente de leis a proibir a prática, mas leis por si só não ajudam a acabar com ela”. Nesse sentido, explicou haver países em que as acções legais contra a MGF levou a que a prática continuasse, mas escondida, aumentando assim os riscos para as raparigas e mulheres, para além de poder desencorajar a procura de apoio médico caso haja complicações decorrentes do procedimento.

“As leis são úteis para mostrar o apoio do governo ao abandono, mas têm de ser acompanhadas por programas efectivos liderados pelas comunidades, forte activismo, e ligações aos líderes religiosos e de comunidades, que podem ser instrumentais em apoiar a mudança ao nível da comunidade”, defendeu.

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Leis locais permitem sanções

Este jornal questionou os Serviços de Saúde de Macau sobre se foram identificados casos de mutilação genital feminina no território ao longo dos últimos dez anos, tendo o Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ) respondido que “não foram verificados casos nos últimos anos no CHCSJ”.

Apesar de não terem sido registadas situações idênticas, quisemos perceber o enquadramento legal da prática em Macau.

Ao Jornal TRIBUNA DE MACAU, a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Justiça (DSAJ) explicou que embora na RAEM não haja uma lei específica sobre mutilação genital feminina, a conduta pode ainda assim ser sancionada com as leis existentes. De acordo com a resposta fornecida, esta acção incorre no “crime de ofensa à integridade física qualificada”, pelo qual o autor do acto pode ser condenado a pena de prisão entre dois a dez anos. Para além disso, caso a ofensa ocorra em circunstâncias que “revelem especial censurabilidade ou perversidade”, como por exemplo se o alvo da mutilação genital for a filha do autor do acto, os limites máximo e mínimo da pena aplicável são agravados num terço.

Em Portugal, a Mutilação Genital Feminina é crime autónomo desde 2015, com uma pena aplicável de prisão de dois a dez anos. Mas, para além disso, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) indica que a legislação portuguesa permite a adopção de medidas que protejam as raparigas ou mulheres em risco de serem levadas para outros países para serem submetidas a esta prática. No Reino Unido a prática também é expressamente proibida, e consiste numa ofensa criminal ajudar, aconselhar ou procurar efectuar o procedimento tanto no Reino Unido como no exterior, mesmo em países onde a prática possa ser legal.

Em Macau, este segundo mecanismo não existe. “Caso os referidos actos criminosos tenham acontecido em Macau, são implacáveis os respectivos regimes jurídicos”, apontou a DSAJ. Caso tenham decorrido fora do território, por norma aplica-se a lei da região onde foi praticado o acto. A excepção é quando as circunstâncias se enquadrem no artigo 5º do Código Penal, nomeadamente quando os factos forem praticados por um residente de Macau contra outro residente e o agente for encontrado em Macau.




By: Jornal Tribuna de Macau